Então,
eu pensei naqueles mortos ao meu redor. Em como seus corpos
destroçados pelas balas respiravam e se moviam minutos atrás.
Então, olhei para minhas mãos, trêmulas e com horror, me dei conta
que eu causara isso. O zumbido da arma cessara e do campo eu escutava
gemidos e últimos suspiros.
O que
havia feito?
Minha
causa era mais justa que a deles? Meus atos eram protegidos por deus?
Aquelas pessoas, que tinham família em algum lugar, jamais voltariam
para casa, jamais voltariam a ver aqueles que por eles aguardavam. E
mesmo se não houvesse alguém esperando, as pessoas sempre tinham
sonhos, e eu os rompi com a força da metralhadora que ainda estava
quente.
O
silêncio que se seguiu e a brisa com o cheiro de sangue me deixaram
doente. Eu olhava, desolado para o campo a minha frente, soldados
caídos por todos os lados. Os uniformes verdes-escuro agora eram
tingidos por uma mancha marrom de sangue. Os uniformes impecáveis
agora estavam perfurados, sujos e imprestáveis.
O que
havia feito?, me perguntei novamente.
Era como
estar ali e não estar. A vertiginosa sensação antes do salto de
paraquedas. Odiava a altura. Eles tinham me deixado ali, naquele
ponto, porque eu odiava altura. Não poderia estar num avião, não
poderia ser um franco-atirador e estar no alto com um fuzil. Não
suportava altura.
Meus
olhos não conseguiam desviar do horror que eu havia causado. Nem
mesmo quando eu vi as comportas dos barcos ancorados na praia se
abrirem. Deveria atirar neles, como havia feito minutos antes,
deveria impedi-los. Eles não poderiam avançar e deus sabe que tinha
munição suficiente para detê-los.
Não
conseguia me mover e quando vi as pesadas botas dos inimigos tocarem
a areia fina da praia e correrem na direção daqueles que estavam
mortos, pensei que não queria ter participado disso. E de nada antes
disso e o anterior a isso. Eles falavam que eu estava fazendo o bem,
mas não era isso que eu sentia. Eu acreditava na Causa, mas agora,
parecia inacreditável que o sangue derramado por minhas mãos
pudesse salvar minhas crenças.
Minha
mão caiu pesada ao lado do meu corpo, enquanto eu caminhava em
direção a pequena janela do bunker e olhava a ação a minha
frente. Os inimigos vinham em seus uniformes verdes, carregando as
pesadas armas. Eles não eram tão diferentes de mim, por que eu
deveria odiá-los?
Me
esqueci porque brigávamos. Me esqueci de nossas diferenças. Lembrei
daquele dia em que minha mãe preparou torta de maçã e eu estava
embaixo da árvore, lendo as poesias do meu pai. Lembrei do sorriso
dela, cheia de orgulho ao me olhar lendo, enquanto deixava a torta
esfriando na janela. Lembrei dos cabelos dourados, encaracolados e
presos. Dos olhos escuros, cheios de uma alegria que eu nunca senti.
As mãos sempre eram carinhosas. As palavras sempre eram honradas. O
que mamãe diria se me visse agora?
As
poesias do meu falecido pai sempre falavam do infinito, da bondade de
deus e do tempo. Eram sobre o sol nascer, o vento sussurrando a
mensagem do nosso senhor, a visão do horizonte no mar. Meu pai havia
sido um bom homem, trabalhara a vida toda e escrevia aquelas linhas
com uma paixão que eu nunca senti.
Ao olhar
aquelas pessoas mortas e ignorar o avanço dos inimigos, eu pensei em
meus pais. Quando ouvia minha mãe chorando em sua cama a saudade que
sentia do companheiro de longa data, quando eu pensava que meu pai
entraria pela porta contente por estar em casa.
Aquelas
pessoas deveriam ter visões iguais. Saudades de coisas que não
conheciam, saudades do que deixaram para trás. Seus nomes deveriam
estar nas orações de alguém, numa lista em algum quartel, com os
companheiros que não vieram nesse batalhão. Queria acreditar que
havia alguém por eles.
Deus, o
que havia feito?
Abandonei
meu posto, meu andar pesado me conduziu para fora. A brisa do mar com
cheiro de sangue me saudou. Meu corpo movia-se sem sentir nada, preso
a uma lembrança que eu nunca possui de verdade. Eu queria chorar e
quando dei por mim, meus olhos já estavam marejados.
Eu
queria me desculpar. Com eles. Com minha mãe. Comigo.
Os
inimigos se tornaram homens na minha frente, viraram pessoas como eu,
e enquanto apontavam suas armas para mim, falavam coisas que eu não
podia ouvir ou entender. Meus olhos focaram no sol atrás deles, a
linha iluminada do horizonte, o mar com ondas calmas. Era sobre
aquilo que meu pai tanto escrevia e agora eu podia ver a mesma beleza
que ele impunha em suas obras.
Quando
fechei meus olhos, eu sorri debilmente, lembrando do meu pai sentado
à mesa, escrevendo aquelas coisas, da minha mãe acariciando o
cabelo dele e levando café fresco. Lembrei de mim, sentado,
observando tudo, sem conseguir pensar em nenhum outro lugar do mundo
onde eu quisesse estar.
As balas
dos homens que vieram do outro lado do mar me atingiram. Muitas
delas. Eu senti pequenas cocegas e cai. Nunca mais levantei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário