domingo, 15 de março de 2015

[Conto] Soldado

Então, eu pensei naqueles mortos ao meu redor. Em como seus corpos destroçados pelas balas respiravam e se moviam minutos atrás. Então, olhei para minhas mãos, trêmulas e com horror, me dei conta que eu causara isso. O zumbido da arma cessara e do campo eu escutava gemidos e últimos suspiros.

O que havia feito?

Minha causa era mais justa que a deles? Meus atos eram protegidos por deus? Aquelas pessoas, que tinham família em algum lugar, jamais voltariam para casa, jamais voltariam a ver aqueles que por eles aguardavam. E mesmo se não houvesse alguém esperando, as pessoas sempre tinham sonhos, e eu os rompi com a força da metralhadora que ainda estava quente.

O silêncio que se seguiu e a brisa com o cheiro de sangue me deixaram doente. Eu olhava, desolado para o campo a minha frente, soldados caídos por todos os lados. Os uniformes verdes-escuro agora eram tingidos por uma mancha marrom de sangue. Os uniformes impecáveis agora estavam perfurados, sujos e imprestáveis.

O que havia feito?, me perguntei novamente.

Era como estar ali e não estar. A vertiginosa sensação antes do salto de paraquedas. Odiava a altura. Eles tinham me deixado ali, naquele ponto, porque eu odiava altura. Não poderia estar num avião, não poderia ser um franco-atirador e estar no alto com um fuzil. Não suportava altura.

Meus olhos não conseguiam desviar do horror que eu havia causado. Nem mesmo quando eu vi as comportas dos barcos ancorados na praia se abrirem. Deveria atirar neles, como havia feito minutos antes, deveria impedi-los. Eles não poderiam avançar e deus sabe que tinha munição suficiente para detê-los.

Não conseguia me mover e quando vi as pesadas botas dos inimigos tocarem a areia fina da praia e correrem na direção daqueles que estavam mortos, pensei que não queria ter participado disso. E de nada antes disso e o anterior a isso. Eles falavam que eu estava fazendo o bem, mas não era isso que eu sentia. Eu acreditava na Causa, mas agora, parecia inacreditável que o sangue derramado por minhas mãos pudesse salvar minhas crenças.

Minha mão caiu pesada ao lado do meu corpo, enquanto eu caminhava em direção a pequena janela do bunker e olhava a ação a minha frente. Os inimigos vinham em seus uniformes verdes, carregando as pesadas armas. Eles não eram tão diferentes de mim, por que eu deveria odiá-los?

Me esqueci porque brigávamos. Me esqueci de nossas diferenças. Lembrei daquele dia em que minha mãe preparou torta de maçã e eu estava embaixo da árvore, lendo as poesias do meu pai. Lembrei do sorriso dela, cheia de orgulho ao me olhar lendo, enquanto deixava a torta esfriando na janela. Lembrei dos cabelos dourados, encaracolados e presos. Dos olhos escuros, cheios de uma alegria que eu nunca senti. As mãos sempre eram carinhosas. As palavras sempre eram honradas. O que mamãe diria se me visse agora?

As poesias do meu falecido pai sempre falavam do infinito, da bondade de deus e do tempo. Eram sobre o sol nascer, o vento sussurrando a mensagem do nosso senhor, a visão do horizonte no mar. Meu pai havia sido um bom homem, trabalhara a vida toda e escrevia aquelas linhas com uma paixão que eu nunca senti.

Ao olhar aquelas pessoas mortas e ignorar o avanço dos inimigos, eu pensei em meus pais. Quando ouvia minha mãe chorando em sua cama a saudade que sentia do companheiro de longa data, quando eu pensava que meu pai entraria pela porta contente por estar em casa.

Aquelas pessoas deveriam ter visões iguais. Saudades de coisas que não conheciam, saudades do que deixaram para trás. Seus nomes deveriam estar nas orações de alguém, numa lista em algum quartel, com os companheiros que não vieram nesse batalhão. Queria acreditar que havia alguém por eles.

Deus, o que havia feito?

Abandonei meu posto, meu andar pesado me conduziu para fora. A brisa do mar com cheiro de sangue me saudou. Meu corpo movia-se sem sentir nada, preso a uma lembrança que eu nunca possui de verdade. Eu queria chorar e quando dei por mim, meus olhos já estavam marejados.

Eu queria me desculpar. Com eles. Com minha mãe. Comigo.

Os inimigos se tornaram homens na minha frente, viraram pessoas como eu, e enquanto apontavam suas armas para mim, falavam coisas que eu não podia ouvir ou entender. Meus olhos focaram no sol atrás deles, a linha iluminada do horizonte, o mar com ondas calmas. Era sobre aquilo que meu pai tanto escrevia e agora eu podia ver a mesma beleza que ele impunha em suas obras.

Quando fechei meus olhos, eu sorri debilmente, lembrando do meu pai sentado à mesa, escrevendo aquelas coisas, da minha mãe acariciando o cabelo dele e levando café fresco. Lembrei de mim, sentado, observando tudo, sem conseguir pensar em nenhum outro lugar do mundo onde eu quisesse estar.

As balas dos homens que vieram do outro lado do mar me atingiram. Muitas delas. Eu senti pequenas cocegas e cai. Nunca mais levantei.


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