terça-feira, 11 de abril de 2017

Diário de bordo - Página TRÊS

Diário de Bordo da passageira quarenta e quatro haga

Brasil

Página 3

Nunca sabemos o quanto podemos ficar preocupados até ficarmos preocupados de verdade. Lá estava eu, meu pensamento confuso, uma vã tentativa de entender o que tinha acontecido. No dia anterior, eu havia feito o passaporte e agora, tudo estava suspenso.

Casa da Moeda suspende produção de passaportes por falta de pagamento


Era o que sempre acontecia no final de ano ou era porque a vez era minha? Como eu podia responder isso sendo que tudo o que pensava era: vão me excluir do programa por não ter passaporte. Quer dizer, minha chance de viajar ao Japão e poderia perder tudo porque valores não foram pagos. Não era nem a minha própria ruína, era uma ruína externa e era isso que mais me incomodava.

Fui até a polícia federal. Foi o que todo mundo me mandou fazer: vai lá e explica para eles. Eu não entendi como isso poderia me ajudar – e ainda não entendo, mas fiz como foi recomendado.

Cheguei na PF do shopping Eldorado e estava funcionando normalmente. Falei com um funcionário sobre a matéria da suspensão e escutei “senhora, tudo o que sabemos é o que foi vinculado, não posso falar mais nada”. Posso dizer que tentei argumentar sobre a importância da minha viagem como se eu fosse o ser mais especial do mundo e que o trabalho de muita gente deveria continuar para que eu pudesse viajar. O homem apenas me olhou e disse que não podia fazer nada. Claro que ele não podia, eu sabia disso, eu tinha feito o que me mandaram fazer e experimentava um verdadeiro horror com a realidade.

Sai dali com o peso do mundo nas costas. Meu maior sonho estava impedido por um problema que eu não podia controlar e não podia fazer nada. Eu não soube bem quando comecei a chorar, eu somente sei que não consegui parar por muito tempo. Como não conseguia me controlar, eu resolvi ir embora do mesmo jeito, aos prantos.

Sentei num banco alto no ônibus, o único vazio e estava tentando controlar as lágrimas e explicar as minhas amigas por um aplicativo de conversa o que estava fazendo e sentindo. Um homem sentou-se a meu lado, me olhou e trocou de lugar.

Um outro homem sentou-se e ficou observando com atenção. Eu desliguei o celular e fiquei olhando pela janela, meus pensamentos eram de que não ia conseguir viajar e que não podia acreditar nisso. Pensava que eu deveria ter feito o passaporte antes já que queria fazer uma vez que estava procurando emprego fora do país.

Dado um momento da viagem, o homem a meu lado tocou meu ombro e me estendeu uma bíblia pequena. Eu olhei o objeto e peguei depois da insistência da mão dele. Olhei para ele, confusa. “Moça, eu não sei o que te aconteceu, mas a sua dor é a minha dor. Aqui você pode encontrar respostas” ele disse e sorriu, se levantando depois. Demorei um pouco para responder, processando o que ele tinha dito. Olhei para ele, indo para a porta, notando que ele não tinha um braço e tinha um dedo onde deveria estar seu cotovelo.

Eu disse “mas eu não sou cristã” e ele respondeu que era um presente. Ele desceu e eu o olhei pela janela e agradeci. Fiquei encarando o pequeno livro depois e guardei na minha bolsa. Eu não chorei mais depois disso. Fiquei com medo de abrir aquele troço e ter uma mensagem negativa. Disse a mim mesma que aconteceria o que deveria acontecer.

A bíblia que ganhei do gentil estranho


Minhas amigas me falaram pelo aplicativo que era um sinal de que deveria me acalmar e que tudo daria certo. Eu vi como uma gentileza de um estranho. Eu  não o conhecia, mas eu não sei se os fatores de nossas dores em semelhantes, mas ele estava certo, as dores são iguais não importam os motivos. Era bem como dizia minha ex-chefe “a pior dor é a que estamos sentindo”.

Sem ter o que fazer, eu esperei. Enviei um e-mail ao Consulado explicando o problema do passaporte e eles responderam que estavam cientes. Eu acompanhava as notícias do pagamento pela internet, mas uma vez anunciado que os passaportes estavam suspensos, não houve mais qualquer nota sobre se ainda estava suspenso ou se já tinha voltado ao normal.

Na outra semana, à noite, eu recebi o e-mail que dizia que meu passaporte estava pronto. Enviei um e-mail a Miki-san contando que o passaporte estava pronto e ela respondeu “até eu estou aliviada por isso”. Na manhã seguinte, eu fui a faculdade e iria buscar. Me encontrei com a Karen, minha amiga do mestrado, que estava indo para a faculdade também. Contar a ela o que aconteceu me fez perceber como eu estava realmente feliz por isso.

Ao final de dias de sofrimento, deu tudo certo. Uma prova que eu deveria ter me acalmado desde o princípio porque não podia fazer nada em relação a suspensão.


domingo, 9 de abril de 2017

Diário de Bordo - Página DOIS

Diário de Bordo da passageira quarenta e quatro haga

Brasil

Página 2

Eu não tinha um passaporte. Eu nunca sai do continente. Minhas viagens internacionais eram para o Uruguay visitar a minha família e aqui com o Mercosul, meu RG era suficiente.

Tive a ajuda de uma amiga com o pagamento da taxa que a Polícia Federal exige para a confecção do documento. Myandra me emprestou o dinheiro assim que saiu a confirmação que eu teria a entrevista no Consulado. Queria pedir o documento o quanto antes, as pessoas contavam histórias de demora para fazer o agendamento e era final de ano, as coisas deixam de funcionar por aqui.

Antes de ir para a minha entrevista no Consulado, eu fui na agência da PF localizada no Shopping Eldorado para tirar dúvidas sobre o procedimento. Os funcionários foram bem colaborativos, eles sorriram e me explicaram como fazer. Me falaram sobre ficar olhando a página da PF e atualizando para ver se acontecia de ter data para dias mais próximos que não 2 de Janeiro (que era a data oferecida no sistema). Graças a essa dica, eu consegui marcar para a semana seguinte.

Já no dia de fazer o passaporte, a funcionária não parecia muito feliz. Eu fiquei de boca fechada, as pessoas têm dias ruins e não queria que nada saísse de errado com o meu passaporte porque queria viajar. O mau humor dela era tão palpável que formava uma névoa densa e negra ao redor dela. Ela ficou pressionando meus dedos para registrar minhas digitais enquanto as pessoas nas cadeiras ao lado da minha, iam embora por já terem resolvido os procedimentos. Ela estava tão mal-humorada e já tinha me dado duas respostas atravessadas que fiquei pensando se eu falava para ela que tinha dez por cento de digitais em alguns dedos (devido a uma queimadura de quarto grau anos atrás) ou que permanecia calada tendo meus dedos esmagados contra o leitor de digitais da mesa dela.

Optei pela segunda opção. Talvez ela tenha pensado que o leitor estava sujo, de qualquer forma, as digitais saíram (não sei com qual qualidade, mas saíram). Enquanto eu a via digitar e apertar os lábios, pensava no dia que tinha ido fazer a biometria no cartório eleitoral e que a moça de lá tinha desistido de pegar a digital de dois dedos (por causa dos dez por cento) e que posso votar com oito dedos. Ela grampeou meus papeis e disse que a confecção do passaporte estava demorando mais de sete dias por causa da procura de fim de ano. Agradeci e fui embora, um pouco preocupada.

Essa preocupação somente cresceu quando, no dia seguinte, foi noticiado que a emissão de passaporte estava suspensa por falta de pagamento. Ai sim, o que começou como uma pequena preocupação transformou todo o meu ser.

Diário de Bordo - Página UM

Diário de Bordo da passageira quarenta e quatro haga

Brasil

Página 1

Em dezembro de 2016, recebi um e-mail do professor com o qual tive aula na pós-graduação me falando sobre um concurso promovido pelo Consulado Geral do Japão em São Paulo para uma viagem ao Japão. O programa tinha o nome de JUNTOS e se tratava de um intercâmbio cultural ao Japão com todas as despesas pagas organizado pela JICE (Japan International Cooperation Center) e o MOFA (Ministry of Foreign Affairs of Japan). O concurso resumia-se a alunos e pesquisadores de cultura japonesa e tinha dois fatores que me favoreciam: não tinha restrição de idade e não era necessário saber japonês.

Após pensar por um dia inteiro – eu sei que isso soa estranho, muitas pessoas teriam se inscrito na hora, mas eu nunca fui uma pessoa de concursos e tive que pensar um pouco, para conseguir a coragem necessária. Conversei com meu amigo Samus, aquele que parece entender minha alma mais do que qualquer outra pessoa no mundo e resolvi participar. Então, notando que não tinha muito a perder, eu me inscrevi. Era necessário preencher os documentos vinculados pelo Consulado e enviar uma redação sobre o porquê essa viagem ajudaria em minha pesquisa.

O texto produzido não foi o dos melhores, hoje eu olho para ele e penso o quanto estava ansiosa, mas ele não é ruim. Sou mestranda em cultura japonesa pelo programa de pós-graduação da USP e eu estudo mitologia japonesa, mais especificamente o Kojiki e dentro desse livro, Izanami e Izanagi. Minha redação falava sobre observar os mitos na sociedade.

Após alguns dias, recebi a resposta. A primeira veio como um e-mail dizendo que não tinha passado para a segunda fase. Na hora, pensei com um sorriso triste que, ao menos, tinha tentado. Alguns minutos depois, recebi outro e-mail que indicava que tinha uma entrevista marcada para a próxima semana. Ainda confusa, recebi um terceiro e-mail pedindo para desconsiderar o e-mail que não havia passado. Foi o momento que fiquei olhando os caracteres na tela do notebook e pensei "uau". 

A entrevista ocorreu no escuro, o Consulado fica na avenida Paulista e estava sem luz. Conheci Miki-san e o cônsul Takamoto. Eles conduziram a entrevista com severidade, como esperado de japoneses. Eu não sabia se tinha ido bem, estava tão nervosa que não é possível lembrar com exatidão do que respondi as perguntas. Eu lembro que olhava o contorno dos dois pela luz que vinha de fora e olhava os telhados dos prédios vizinhos, enquanto pensava que estava fazendo uma entrevista para ir ao Japão. Eles ficaram surpresos por meu tema de estudo ser o Kojiki e me questionaram sobre o Japão atual e o Japão Antigo – o qual estudo e que tipo de choque eu esperaria por essa distância entre a realidade e o estudo, respondi que o passado sempre está lá, você só precisa olhar para ele, mesmo que a sociedade não seja a mesma (movida por regras e valores que ganharam outros entendimentos), seus resquícios ainda estão lá.

Como estudar mitos e outra era do Japão poderia me ajudar a sociedade atual? Como explicar que mitos não são apenas histórias? Como explicar que a mitologia permanece?  

Demorou mais alguns dias para a resposta dessa entrevista. Eu já não sabia mais o que pensar. Tinha repassado a entrevista tantas vezes e respondido as perguntas de muitas outras formas. Era uma confusão e uma ansiedade só em minha cabeça.

Então, numa sexta-feira, recebi um telefonema da Miki-san dizendo que havia sido selecionada para o Programa Juntos e que ela precisava do meu passaporte para dar entrada no visto.

Minha surpresa foi tanta que quando ela disse "parabéns" eu ainda estava processando que iria ao Japão. 

Minha Grande Mãe Divina, eu fui selecionada! Eu ia para o Japão!

Diário de Bordo - JUNTOS JAPAN

Olá,

Meu blog sempre está meio abandonado, mas eu viajei para o Japão e devo escrever o que eu vi e o que vivi enquanto estive lá. Por isso, nasce uma nova série de postagens aqui no blog chamado Diário de Bordo - JUNTOS JAPAN, que era o nome do programa o qual eu participei.

Alguns dos textos, os que eu achar mais interessantes, serão postados no MEDIUM também.

Esse programa de intercâmbio foi organizado por:
-> JICE (Japan International Cooperation Center)
-> MOFA (Ministry of Foreign Affairs of Japan)